sábado, 7 de julho de 2012


FUTUROS VERMELHOS

Ficção científica além da Cortina de Ferro



Bruno Schlatter

É interessante notar como a ficção científica se tornou, ao longo do século XX, um gênero literário associado aos Estados Unidos e ao mundo capitalista e anglófono de maneira geral. Apenas para fins de ilustração, um blog (obviamente norte-americano) dedicado ao tema fez algum tempo atrás uma listagem de obras de ficção científica e fantasia na forma de um fluxograma para guiar um leitor iniciante. Entre os selecionados, a predominância quase absoluta de autores de língua inglesa é patente – as únicas obras em outro idioma presentes são as do francês Júlio Verne, praticamente o pai do gênero. É claro que não se pode tomar um trabalho tão informal como exemplo geral (afinal, uma lista que inclua nomes como Max Brooks, cujo elemento mais significativo do currículo é ser filho do comediante Mel Brooks, e ignora outros como o argentino Jorge Luís Borges ou o italiano Italo Calvino, não pode ser levada muito a sério), mas ela se presta bem para ilustrar a predominância da língua na definição dos paradigmas mais conhecidos do gênero, através de autores como L. Sprague de Camp, Isaac Asimov e Ray Bradbury.

Pode parecer fácil concluir a partir destes autores mais paradigmáticos que a ficção científica como um todo é cria do capitalismo moderno, uma espécie de subproduto da ideologia do progresso absoluto e do avanço tecnológico irrestrito. Como toda conclusão precipitada, no entanto, ela ignora todo o panorama mais amplo do gênero, com autores que muitas vezes escreveram em outras línguas e que, justamente por isso, não tiveram um alcance mais significativo no contexto cultural ocidentalizado após a Segunda Guerra Mundial.

Os países socialistas do leste europeu, em especial, a começar pelos que formavam a antiga União Soviética, foram durante todo o século XX bastante prolíficos neste campo. Pode-se resgatar esta tradição na literatura fantástica, na verdade, desde os contos eslavos medievais, e mesmo alguns dos grandes escritores russos do fim do século XIX e começo do XX, desde pelo menos Nikolai Gogol, com o seu clássico conto O Nariz, até Mikhail Bulgakov, que chegou a se aventurar pela ficção científica propriamente dita em histórias como Um Coração de Cachorro. A própria palavra robô tem raiz tcheca, uma vez que os famosos robôs do gênero apareceram pela primeira vez em um peça teatral do escritor Karel Čapek.

É preciso relacionar, é claro, muito da ficção científica em países socialistas à própria ideia de futuro revolucionário. A ideologia revolucionária é uma ideologia que se volta para o futuro, tentando prever a vitória final do comunismo contra o capitalismo, e isso não poderia ser simplesmente ignorado por um gênero literário cujo elemento marcante é justamente a especulação sobre a ciência e o futuro da humanidade. Some-se ainda a censura imposta pelo regime totalitário, que inibia o uso da literatura com fins mais críticos, e tem-se toda uma tradição de utopias fantásticas e batalhas entre comunistas e capitalistas no futuro distante, do qual destaca-se, acredito, as obras do russo Aleksey N. Tolstoy. Aelita, por exemplo, narra a viagem de um engenheiro comunista a uma sociedade totalitária em Marte, e é considerada por muitos como a primeira ficção científica espacial soviética (ainda que com um enredo suspeitamente parecido com A Princesa de Marte, do norte-americano Edgar Rice Burroughs, recentemente adaptado como um blockbuster de cinema com o nome de John Carter: Entre Dois Mundos).

Algumas distopias mais críticas ao regime, no entanto, também foram escritas neste período, mas foram muitas vezes proibidas de serem publicadas até a abertura política no fim do século. Além de casos mais emblemáticos, como o já citado Bulgakov, destaca-se principalmente a obra do russo Yevgeny Zamyatin, cuja obra-prima é We, uma sátira da racionalização do trabalho passada mil anos após o Estado Único conquistar toda a Terra. Em um mundo onde as pessoas são referidas por códigos de letras e números – o protagonista, por exemplo, é chamado D-503 -, Zamyatin aproveitou para realizar várias críticas ao governo bolchevique pouco após a Revolução de Outubro (o livro foi completado em 1921, e uma primeira edição foi publicada em 1924 na Inglaterra; mas ele foi publicado no seu país de origem apenas em 1988). Apesar de pouco conhecido no ocidente, o livro é considerado por alguns críticos e ensaístas como uma das grandes distopias da ficção científica do século passado, a par com 1984, de George Orwell, e Admirável Mundo Novo, de Aldous Huxley.

O título de mais conhecido escritor de ficção científica a leste da Cortina de Ferro, no entanto, provavelmente pertence ao polaco Stanislaw Lem, autor de livros como A Cyberíada, Memórias Encontradas numa Banheira, e o seu mais famoso, Solaris, adaptado duas vezes para o cinema. Ele já pertence, no entanto, a um período posterior do mundo socialista, pós-Stálin, escrevendo boa parte dos seus trabalhos mais conhecidos no  período de distensão do conflito velado entre as superpotências durante as décadas de 1960 e 1970. Suas obras, mesmo as mais leves e descontraídas como A Cyberíada, possuem um tom mais crítico e de questionamento, especulando sobre a natureza de inteligências alienígenas e as vicissitudes da comunicação humana.



Lem também nos permite fazer a ligação com outro importante nome da ficção científica socialista, porém em outra mídia que não a literatura, o cinema. A primeira e mais conhecida adaptação de Solaris ficou a cargo de Andrei Tarkovsky, renomado diretor russo, e recebeu diversos prêmios e nomeações em festivais internacionais. Foi uma produção com uma dose considerável de polêmicas, em especial entre os seus dois criadores, que divergiram bastante sobre a fidelidade da adaptação. O filme de Tarkovsy, de maneira geral, busca explorar o drama mais humano dos cientistas envolvidos com a descoberta de uma inteligência alienígena do tamanho de um planeta, diferente da obra original de Lem, que tem como elemento central a própria inteligência extraterrena e o seu contato com os astronautas da Terra.

Outra obra importante de Tarkovsky com elementos de ficção científica é Stalker, baseado na novela Roadside Picnic, dos irmãos Arkady e Boris Strugatsky. Como em Solaris, a adaptação também exibe muito mais a assinatura do diretor do que dos seus autores originais. O centro da narrativa, novamente, está nos personagens humanos – um escritor e um cientista que querem fazer uma incursão à “Zona”, uma região proibida onde fenômenos inexplicáveis acontecem, e, principalmente, o guia que contratam para levá-los –, e menos no seu elemento fantástico, que, na novela, supõe-se abertamente ser de origem alienígena. Pode-se dizer que Tarkovsy faz uma leitura mais universal do enredo no seu trabalho, com questionamentos sobre a própria natureza humana e a sua busca de sentido e dignidade, enquanto o mundo dos irmãos Strugatsky recorre mais diretamente à sátira do que à alegoria, servindo de veículo para críticas mais diretas à arte, à ciência e a religião.



Mesmo nos dias de hoje há espaço para o fantástico e a ficção científica entre autores de ex-repúblicas soviéticas, mesmo aqueles que, fugindo da classificação de literatura de gênero, atingem algum renome literário. O principal destes possivelmente seja, acredito, o russo Victor Pelevin, que os mistura com filosofia oriental em obras como Omon-Ra, A Vida dos Insetos e The Sacred Book of the Werewolf como uma forma de satirizar e criticar a sociedade pós-soviética no seu país. Outro autor russo contemporâneo a explorar o tema é Vladmir Sorokin, que em Day of the Oprichnik que retrata a possibilidade de uma volta ao czarismo em uma Rússia distópica algumas décadas no futuro. E outros países onde o gênero é prolífico nos dias de hoje incluem a Ucrânia, muito embora diversos autores do país na verdade publiquem seus livros por editoras russas, a República Tcheca, e a Romênia.

Este pequeno resgate de obras e autores pouco conhecidos no mundo ocidental, é claro, não quer ser exatamente um guia definitivo, mas apenas um ponto de partida para entender melhor a ficção científica escrita fora da esfera cultural do ocidente. Pode-se encontrar obras assim também no Japão e na China, na Indonésia e mesmo em países muçulmanos. O importante é a consciência de que especular sobre o futuro, a ciência e a tecnologia não é necessariamente uma característica do mundo capitalista, mas um traço comum à maioria das sociedades humanas, excetuando-se talvez as mais simples e arcaicas.



Sugestões de leituras:

Blog Leitura Escrita. Fluxograma para um leitor iniciante de ficção científica e fantasia. http://leituraescrita.com.br/2011/10/07/fluxograma-para-um-leitor-iniciante-de-ficcao-cientifica-e-fantasia/

BULGAKOV, Mikhail. Um Coração de Cachorro e Outras Novelas. São Paulo: EdUSP, 2010.

ZAMYATIN, Yevgeny. We. New York: Penguin, 1993.

LEM, Stanislaw. Solaris. Rio de Janeira: Relume-Dumará, 2003.

_____________. Cyberiad. San Diego: Harcourt, 2002.

STRUGATSKY, Arkady, & STRUGATSKY, Boris. Roadside Picnic. Chicago: Chicago Review Press, 2012.

PELEVIN, Victor. Omon-Ra. New York: New Directions, 1998.

SOROKIN, Vladmir. Day of the Oprichnik. New York: Farras, Straus and Giroux, 2011.



Bruno Schlatter

É professor de História na Rede Municipal de Porto Alegre

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