sábado, 16 de junho de 2012


A Guerra dos Mundos. De H. G. Wells a Steven Spielberg

Por Rafael Belló Klein


            É possível que nem todos, especialmente os mais jovens apreciadores do cinema hollywoodiano moderno, repleto de efeitos especiais, saibam que o filme Guerra dos Mundos, grande sucesso de bilheteria de Steven Spielberg, foi baseado em uma obra literária do século XIX. De fato, a inspiração para a superprodução de Spielberg, de 2005, foi o livro The War of the Words do escritor britânico Herbert George (H. G.) Wells, publicado pela primeira vez em 1898.

            H. G. Wells é hoje considerado um dos grandes fundadores da ficção científica como gênero literário. Entre suas obras encontram-se grandes clássicos como A Máquina do Tempo (1895), A Ilha do Dr. Moreau (1896), O Homem Invisível (1897) e, é claro, A Guerra dos Mundos (1898); todos com diversas adaptações de sucesso para o cinema.



O livro A Guerra dos Mundos de Wells, dividido em duas partes, narra a história da chegada e da conquista da Terra por marcianos, uma raça de seres tecnologicamente mais avançada que a nossa, que por muito tempo observou, invejou e desejou para si nosso fértil e habitável planeta, tendo em vista o esgotamento e degradação do seu próprio planeta de origem. Os marcianos chegam a Terra por meio de cápsulas artificiais, à primeira vista confundidas com meteoros, uma das quais cai nos arredores de Londres, próximo à casa do narrador da história, cuja identidade não é apresentada.

Os invasores, após algum tempo, saem de suas cápsulas, sendo feita na seqüência, uma primeira tentativa pacífica de comunicação, porém o grupo que se aproxima dos marcianos é desintegrado pela ação de um “raio de calor” (heat-ray, no original). Esta, juntamente com os tripods, grandes estruturas metálicas com três pernas e a black smoke, fumaça negra tóxica, são as principais armas dos marcianos, cuja avançada tecnologia em breve domina toda a região.

A descrição dos marcianos, semelhantes a polvos gigantes, é impactante:

“Uma grande massa cinzenta e arredondada, talvez do tamanho de um urso, emergia lenta e penosamente do cilindro. (...) brilhava como couro molhado. Dois grandes olhos escuros fitavam-me impassivelmente. A massa que os rodeava, a cabeça da coisa, era redonda e tinha, digamos, um rosto. Havia uma boca sob os olhos, uma fenda sem lábios que fremia e arquejava, pingando saliva. (...).
Quem nunca viu um marciano vivo não pode imaginar a estranheza e o horror de sua aparência. (...) o incessante frêmito da boca, o monstruoso grupo de tentáculos, como os de uma Górgone, o tumultuoso respirar dos pulmões (...). Havia algo de fungóide na oleosa pele marrom, algo de uma sordidez indizível na deliberação desajeitada dos movimentos tediosos. Mesmo nesse primeiro encontro, (...) o nojo e o pavor me dominaram”.



Sem querer examinar à exaustão a cativante narrativa de Wells, é interessante citar também a famosa passagem em que o protagonista-narrador fica preso com um padre em uma casa em ruínas, com os invasores nas proximidades. Isso porque, em primeiro lugar, esta será uma cena adaptada nas versões cinematográficas do livro, mas principalmente pela sua significação maior. O religioso está convencido de que a chegada dos alienígenas é o advento do Apocalipse bíblico, e passa a ter ruidosos rompantes de fé, que acabam por atrair os marcianos. Por suas ações, temos a impressão de que o padre enlouqueceu perante a situação.

De fato, temos a partir daí uma possível interpretação da obra de Wells. A humanidade salva-se da invasão marciana não por uma intervenção direta por parte de Deus ou de sua Igreja; ao contrário, Wells aparenta ser bastante pessimista quanto às instituições religiosas, como fica claro na passagem acima. A salvação da humanidade se dá pela ação de bactérias presentes em nossa atmosfera, para as quais os marcianos não possuem nenhum tipo de defesa imunológica. No entanto, apesar do materialismo da solução da crise, não se pode dar à história um caráter de ateísmo, visto que as bactérias para Wells os marcianos foram derrotados “depois do fracasso de todos os recursos humanos, pelos mais humildes seres que Deus, em sua sabedoria, havia posto sobre a Terra”.

Outras interpretações da Guerra dos Mundos ressaltam sua ênfase no cientificismo do século XIX, incorporando os conceitos de seleção natural e de darwinismo social; ou seu caráter visionário ao “prever” tecnologias que seriam desenvolvidas ao longo do século XX (guerra química, uso de gases, raio laser); ou ainda uma crítica implícita ao imperialismo britânico que chega como um invasor, devasta outros povos, suga seus recursos (a imagem dos alienígenas que se alimentam de sangue de outras criaturas, inclusive do homem, é bastante significativa) e traz consigo inclusive um impacto ambiental (no livro, a red weed, ou hera vermelha, trazida pelos marcianos, rapidamente se alastra pela vegetação terrestre).



Ainda mais desconhecido que a origem literária do filme, talvez, seja o fato de Spielberg não ter sido o único a trazer a obra de Wells para as telas do cinema. Além das produções independentes mais recentes (e menos divulgadas), a Guerra dos Mundos ganhou sua primeira versão cinematográfica através das lentes do diretor Byron Haskin e do produtor George Pal, em 1953; tendo recebido o Oscar de efeitos especiais daquele ano, e sendo hoje considerado um clássico da ficção científica dos anos 50.

O enredo central da história é bastante semelhante ao do livro, brevemente exposto acima, porém com algumas diferenças. Os marcianos chegam também em cápsulas confundidas por meteoros; porém a trama se desenrola na Califórnia (como bem soe ao cinema norte-americano) e ao invés de um narrador impessoal, ela se centrará na figura do Dr. Clayton Forrester (Gene Barry), cientista anteriormente engajado no Projeto Manhattan, que formará par romântico com Sylvia Van Buren (Ann Robinson), a quem encontra no local de queda do “meteoro”. Ambos irão protagonizar e celebrizar a cena do refúgio na casa em ruínas, cercada por alienígenas que os procuram, primeiro com uma câmera e depois pessoalmente. O papel do religioso, por sua vez, é aqui representado pelo tio de Sylvia, o pastor Matthew Collins (Lewis Martin) que tenta um contato pacífico antes do belicoso, ostentando uma Bíblia, na crença de não ser atacado. Ele, no entanto, é desintegrado pelo raio de calor dos marcianos, a exemplo de todos que antes tentaram uma aproximação.

Há entanto, no filme, uma espécie de “redenção” da religiosidade, visto que Sylvia e Forrester, juntamente com todos aqueles que não conseguiram escapar da cidade grande refugiam-se em uma igreja à espera de um milagre, que vem sob a forma de uma ação natural das bactérias sobre os organismos indefesos dos marcianos.

Existem ainda detalhes estéticos e do desenrolar da história, que diferem do original do livro, e que são interessantes de se pontuar, pois tem influências no trabalho de Spielberg. Em primeiro lugar, a utilidade dos humanos para os invasores que no livro é a de servir como alimento, no filme de Haskin ela inexiste – os terráqueos são apenas um empecilho a colonização marciana do planeta e devem ser exterminados. Em segundo lugar, se no livro a tecnologia bélica do século XIX, ainda que pouco eficaz, é capaz de proporcionar um conflito, uma resistência, no filme as armas utilizadas pelo ser humano contra os invasores são totalmente inúteis (inclusive a bomba atômica!), esbarrando em um campo de força ao redor das naves marcianas. Por fim, a aparência dos extraterrestres e de suas máquinas diferem das descrições de Wells. Os tripods não aparecem no filme de Haskin, sendo substituídos por naves flutuantes de formato triangular, com uma “cabeça” emissora dos raios de calor. Os marcianos (ou o marciano, pois apenas uma vez ele aparece nitidamente – na cena da casa abandonada) aparecem com uma estrutura bípede ereta, quase humanóide, são mais baixos que um homem adulto, e apresentam uma particular (e desconcertante) recorrência do número três: três dedos, três olhos, e chegam em grupos de três naves.



A versão de Spielberg, como vemos, tem suas influências e precursores. Mantendo a seqüência original de chegada – conquista da Terra – queda devido à ação de microorganismos, Spielberg insere na trama, além dos efeitos especiais que tornam o filme mais realista e por isso mais assustador, o drama familiar de Ray Ferrier (Tom Cruise), que tem uma relação distante com seus filhos Rachel (Dakota Fanning) e, principalmente, Robbie (Justin Chatwin).

A chegada dos invasores – que dessa vez não são originários de Marte, mas de outro planeta desconhecido – se dá de forma diferente das versões anteriores: agora eles criam uma tempestade eletromagnética, que desativa todos os serviços eletrônicos (também anulados nas áreas em que caem os meteoros na versão de 1953), e utilizam a partir dela uma espécie de “raio-transportador”, que os leva aos tripods enterrados nas profundezas da terra há milhares de anos, revelando uma premeditação atemorizante. É notório que a violência dos invasores se manifeste com uma rapidez quase imediata, bem mais rápida que nas versões anteriores, e até destoante da filmografia anterior de Spielberg – onde sempre houve uma propensão ao contato interplanetário pacífico, como em Contatos Imediatos de Terceiro Grau (1977) e E.T. (1982).

Sem entrar em muitos detalhes acerca do enredo da história, podemos destacar algumas das retomadas de Spielberg: os humanos voltam a ter uma utilidade para os invasores (fertilizar a red weed); o padrão trinomial dos extraterrestres, introduzido pela versão de Haskin e Pal, é expandido (os alienígenas possuem além dos três dedos, três pernas e uma cabeça em formato quase triangular – fazendo com que os tripods pareçam uma versão metálica gigante dos próprios invasores); as armas humanas seguem sem fazer efeito contra a tecnologia extraterrestre; e, por fim, a utilização por Spielberg de cenas clássicas do filme anterior – por exemplo, a cena final do alienígena agonizante que estende a mão para fora do tripod e a cena do abrigo na casa em ruínas, que parece uma junção de influências do livro (a condensação de personagens do livro na figura de Harlan Ogilvy, representado por Tim Robbins) e do filme anterior (proteção de uma “indefesa”, antes o par romântico, agora a filha).

O filme de 2005, assim, deixa claro que não é uma mera refilmagem, uma simples atualização da obra anterior. Spielberg faz questão de imprimir sua marca ao filme, sem, no entanto, desfigurá-lo ou renegar a influência da produção anterior, selando o reconhecimento dessa dívida ao escalar, para os papéis dos ex-sogros de Ferrier, Gene Barry e Ann Robinson, estrelas do Guerra dos Mundos de 1953.

Rafael Belló Klein é graduado em História na UFRGS.

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