sábado, 26 de maio de 2012


As três visões de Matheson

 

Carlos Thomaz Albornoz[1]

 

Eu sou a Lenda, de Richard Matheson, foi uma raridade, desde o seu lançamento, em 1954. Um clássico instantâneo, adorado pelo público e pela crítica (pelo menos os críticos de ficção científica). Uma bem sucedida mistura de gêneros, horror e ficção, que não trai nenhum deles. Um livro que mesmo seguindo várias tendências dos anos 1950 (texto apocalíptico, referências veladas à guerra fria) não ficou datado. Praticamente desde a sua publicação ficou claro que poderia dar origem a um grande filme. Tinha até o tamanho ‘ideal’, de novela, nem precisaria cortar muita coisa para tal (Matheson ser roteirista de cinema pode ter algo a ver com isso). Mas três, bem diferentes um do outro?

Em 1964 o empregador de Matheson, Roger Corman, comprou os direitos do livro para rodar na unidade europeia de sua produtora, a AIP. O filme foi rodado na Itália, sob a batuta do britânico Sidney Salkow (e não de Ubaldo Ragona, citado nos créditos apenas para a produtora receber incentivos fiscais), com a estrela da companhia, Vincent Price, no papel principal. Das adaptações citadas neste texto é a mais fiel: mantém os mortos vivos como vampiros conscientes de seu passado humano, o personagem central como um ser atormentado e trágico, e ‘segura’ inclusive o final pessimista. A principal adaptação que faz diz respeito à cidade onde se passa a história: o livro descreve Nova York, no filme se trata de uma vila anônima, já que a produtora não tinha dinheiro para ambientar tudo em Big Apple. Há mudanças menores, também (o nome e profissão do personagem, a forma com que se dá o final), nada que desvirtue a adaptação, mas o suficiente para irritar o autor, que assinou o roteiro sob pseudônimo.




O cinema de ficção científica ganhou um insuspeito aliado quando Charlton Heston, que ganhou fama representando nada menos que Moisés e Ben Hur e era o ator mais poderoso de sua época, revelou-se fã do gênero. Ele lutou anos para tirar do papel uma adaptação de O Planeta dos Macacos, que foi um sucesso retumbante e o permitiu fazer, quase literalmente, o que quisesse. E ele quis filmar seu livro favorito, que era... Eu sou a Lenda.

O fato da obra ter sido filmada meros 10 anos antes não assustou Heston, afinal era só fazer umas ‘pequenas adaptações’ e não haveria problema. Assim nascia A Última Esperança da Terra, dirigido por Boris Sagal em 1974. O que era um conto trágico virou um filme de ação, e os vampiros do livro (e do primeiro filme) viraram mutantes nucleares. O que era uma praga espalhada por bactérias (tanto na literatura quanto no filme da AIP) virou uma arma biológica que deu errado (sugestão da roteirista, Joyce Corrington, formada em química). E, claro, o personagem trágico de Price não combinava com a personalidade macho man de Heston, que vira um herói de ação, que sai caçando mutantes pelas ruas vazias de Nova Iorque com sua metralhadora, no melhor estilo vigilante dos anos setenta. A fidelidade literária foi para o espaço, mas pelo menos o filme era divertido (algo que nem sempre acontece nas adaptações literárias), e grande parte de seus espectadores não conhecia o original.

O sucesso (financeiro) deste filme já o ‘marcou’ para uma refilmagem, pelo menos desde o meio dos anos 80. Arnold Schwarzenegger faria o ator central, e Ridley Scott, depois Paul Verhoeven, assumiriam a direção. O tempo foi passando, vários atores (Tom Cruise, Nicholas Cage, Michael Douglas e Mel Gibson chegaram a estar ligados ao projeto em algum momento), diretores e roteiristas iam tentando adaptar a obra, com mais ou menos sucesso, e o projeto não saía do lugar. O problema era sempre o mesmo: orçamento. O filme de Schwarzenegger foi orçado, no início dos anos 90, em 250 milhões de dólares, um custo irreal para a época, e só não foi feito por Batman e Robin ter sido um relativo fracasso de bilheteria, assim como Esfera e O Carteiro, convencendo os produtores que não era hora de investir num épico de ficção científica.  O livro Tales from the Development Hell, de David Hughes, conta as diferentes fases do projeto.

Tudo começou a andar quando Will Smith se envolveu. Um projeto seu (Hancock) atrasou, ele foi ver em qual projeto em andamento ele podia se encaixar e escolheu ‘Lenda’. Em uma medida rara, dois roteiros escritos de forma independente, por Mark Protosevich e Akiva Goldsman, foram combinados por eles para a filmagem. A direção chegou a ser confirmada para nomes tão díspares como Rob Bowman, Michael Bay e Guillermo Del Toro, mas acabou nas mãos de Francis Lawrence, vienense acostumado a trabalhar rápido. Os fãs do livro temeram o que podia acontecer após o projeto passar por tantas mãos. Para surpresa geral há uma relativa fidelidade ao livro na primeira metade... que vai se afastando à medida que a história avança. Os vampiros do livro viram zumbis, o especialista em plantas vira cientista tentando resolver a praga, o final trágico vira heróico... para aumentar nosso desgosto, a personagem de Alice Braga, brasileira na história, é ‘apresentada’ a Bob Marley pelo personagem central... o resultado final até que é satisfatório, ainda mais comparando com os absurdos roteiros que vazaram durante a longa gestação deste projeto (o roteiro que devia ter sido filmado por Schwarzenegger mistura O Exterminador do Futuro com Duro de Matar, e um herói fanático por one liners, no estilo ‘engole essa’...).

Além destas três adaptações ‘oficiais’, há algumas dezenas de filmes e livros influenciados pelo livro de Matheson. O mais notório de todos é A Noite dos Mortos Vivos, clássico filme de George Romero, que assumidamente se serviu de vários elementos do livro para seu roteiro, fato esse admitido por Romero. Para ficar em um filme recente, Eu sou Omega, ‘concorrente’ do filme de Will Smith lançado em vídeo na semana que este chegou aos cinemas, é uma espécie de refilmagem (pouco ou nada disfarçada) de A Última Esperança da Terra, o dos anos setenta, que retorna ao livro de origem várias vezes. Em outros tempos teria gerado um processo por plágio.



[1] Crítico de cinema. E-mail:

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