sábado, 12 de maio de 2012


Desventuras da Peste, o primeiro Cavaleiro do Apocalipse!

Cesar Augusto Barcellos Guazzelli

            A São João Evangelista, o mais jovem dos Apóstolos de Jesus, se atribui a escrita do último dos livros que compõem a Bíblia dos cristãos: o Apocalipse (em grego Revelação, porque teria sido ditado ao santo pelo próprio Cristo. Admite-se que a obra foi realizada durante o império de Domiciano (81-96 A.D.), época caracterizada pela devassidão de costumes, o que favorece muito as profecias sobre o final dos tempos como purgação dos pecados do mundo.

            É de João que vêm os Quatro Cavaleiros do Apocalipse, iniciando a destruição: a Peste, a Guerra, a Fome e a Morte. Numa célebre gravura de Dührer, eles aparecem tal como os descreveu o Apóstolo, e à esquerda de todos figura a Peste: “E eu vi, e eis um cavalo branco; e o que estava sentado nele tinha um arco; e foi-lhe dada uma coroa, e ele saiu vencendo para completar sua vitória” (6:2). Por que ele é o primeiro a aparecer? O branco do cavalo é a palidez que as doenças trazem em geral? As flechas medem seu alcance e sua rápida difusão? Não se trata aqui de exegeses ou interpretações, mas aí está a mais conhecida referência literária (mesmo que seja uma revelação!) à Peste, ou às pestes, quem sabe...



            Mas certamente não é a mais antiga. Na sua famosa História da Guerra do Peloponeso, Tucídides descreve a epidemia que atingiu Atenas em 430 A.C. durante o cerco implacável que sofria pelas tropas espartanas. Com a população ateniense confinada, a doença teria sido disseminada a partir do porto de Pireu, única comunicação exterior de Atenas, de onde rapidamente atingiu e matou cerca de um terço dos atingidos. Discute-se muito a natureza da epidemia: poderia ter sido peste bubônica, varíola, tifo ou outras... Pode-se dizer que ela esteve de acordo com os princípios que norteavam Atenas e foi “democrática”, pois matou também Péricles, o estratego da cidade, além de atingir ao mesmo Tucídides! Até mesmo “as preces feitas nos santuários, ou os apelos aos oráculos e atitudes semelhantes foram todas inúteis e, afinal, a população desistiu delas, vencida pelo flagelo”.

            Já avançada a Era Cristã, outras tantas pragas ao seu tempo tiveram contornos apocalípticos e pareciam convidar a todos para o fim dos fins. Nada como a Peste Negra, a grande epidemia de peste bubônica que assolou a Europa no século XIV. Assim como em Atenas, ela vinha de fora, e os culpados eram asiáticos, certamente infiéis. A Peste Negra pode ter liquidado até 75 milhões de pessoas, ou quase um terço da população européia. Sabe-se hoje que ela é causada por uma bactéria, Pausterella pestis, transmitida pela pulga do rato; ou seja, a difusão dos principais vetores era favorecida pelas péssimas condições de higiene das cidades medievais. Em sua ânsia para conter o que parecia ser um flagelo divino, alguns religiosos recomendaram a queima das enormes quantidades de lixo, além dos cadáveres insepultos, o que de certo ajudou no declínio da moléstia. Dela ficou também um livro canônico, o Decameron de Bocaccio, que conta cem histórias narradas por dez jovens que se refugiaram num elegante palácio ao longo dez dias, com todos os requintes da época, logo depois que “sobreveio a mortífera pestilência” que atingiu Florença.

            Num texto bem menos requintado que o florentino, Daniel Defoe, escreveu em 1722 o Diário Sobre o Ano da Peste, ocorrida em Londres em 1665. Conta ele: "Terrível peste este em Londres no ano de sessenta e cinco cem mil almas levou consigo mesmo assim, estou vivo!" Mesmo que haja excesso de dramaticidade, pois ele era muito criança quando da epidemia para dar um testemunho tão eloqüente, a doença fez entre 75 e 100 mil vítimas, a quinta parte da população londrina. Uma cidade afamada pelas piores condições higiênicas, também foi a contaminação externa a causa da epidemia, trazida pelos navios mercantes!

            Conhecedor que era dos acontecimentos no Novo Mundo, como bem demonstra em seu Robinson Crusoe, Defoe deveria estar a par das catástrofes causadas pelas moléstias espalhadas pelos conquistadores entre os nativos americanos. Além da varíola, uma doença viral que além de deixar marcas permanentes tinha alta mortalidade, outras viroses menos perigosas, como varicela, sarampo ou mesmo gripe, atingiam populações que não tinham imunidade a elas. Existem cálculos de que até uns 90% da população dos grandes impérios Azteca e Inca tenham sido vitimados por estas doenças. (Ainda no século XIX houve no Oeste dos Estados Unidos casos de empresários – e mesmo funcionários inescrupulosos – que distribuíam cobertores e roupas contaminados entre indígenas das reservas para exterminá-los!)

            (A varíola certamente foi uma das doenças epidêmicas mais danosas. Não por acaso era no Brasil conhecida como “bexiga preta”, pelo tamanho e aspecto das pústulas, que deixavam sinais permanentes. No Candomblé ela é associada a Omolu, o Orixá da doença e da morte, mas também da cura. Mas dentro da mui discutível afirmação de que “há males que vêm para bem”, foi a varíola que proporcionou e primeira forma eficiente para o tratamento de moléstias contagiosas. A descoberta por Jenner em 1796 de que leiteiras infectadas pela forma variólica benigna que atingia as vacas tornavam-se imunes à doença, incentivou-o a criar um preparado das pústulas secas dos animais, inoculando-os em pessoas sadias: inventava-se a “vacina”, palavra derivada do latinismo para vaca.)

            Os indígenas, no entanto, aparentemente “vingaram-se” dos seus algozes, já que parece ter sido americana a origem da sífilis, causada pela bactéria Treponema pallidum. Como no mais das vezes, as doenças vêm de fora! Era evidente que se tratava de doença sexualmente transmissível, o que deleitava os santos padres ao atribuírem os males ao castigo divino pelos pecados contra a castidade. Assim, a promiscuidade forçada pelos conquistadores contra as indígenas, mais tarde contra as escravas africanas, distribuía castigos iguais entre vítimas e carrascos. No entanto, mesmo na Europa as rivalidades entre os Estados faziam que uns e outros se acusassem pela transmissão de uma doença tão perigosa – e tão difícil de evitar, dada a fraqueza comprovada da carne! Na Itália, a sífilis era chamada de “mal francês” ou “gálico”, adjetivo que ainda hoje se usa; no entanto, os franceses a chamavam de “mal veneziano” ou “florentino”...

            Mas quem diz que uma doença muito feia não pode ser também romântica? O século XIX foi o do Romantismo, onde melancolia, sofrimento, decadência física como resultado dos males do amor, traziam junto também uma atmosfera soturna, “gótica” como querem alguns! Mais destaque à palidez que às cores, aos silêncios que as festas, às noites que aos dias. Foi a época da Peste Branca, o estigma do Mal do Século, a tuberculose pulmonar – ou tísica, como era chamada. A Noite na Taverna trouxe ao seu autor, Álvares de Azevedo, sua morte aos 21 anos, bem de acordo com o “libreto” de então. Alexandre Dumas, o Filho, ficou famoso criando a Dama das Camélias, a cortesã que morre de tísica. Ou seja, é ainda o pecado que traz consigo a penitência das doenças, não importando aqui que a tuberculose atingisse muito mais a população infantil e os miseráveis em geral das grandes cidades, que pouco tempo ou vontade tinham para tanto pecado! Talvez uma metáfora da doença que consumia corpo e alma das vítimas seja a literatura vampiresca, desde O Vampiro de Polidori, passando entre outros por Carmilla de Le Fanu, até o Drácula de Stoker. Afinal, pecado, sexo, palidez, e morte entre golfadas de sangue... 

            O Mal não terminou com o século, mas o século XIX não acabou com os males, apesar de a teoria microbiana ter derrubado de vez os miasmas medievais, além de os governos empurrarem literalmente goela abaixo dos doentes a medicina científica. A febre amarela, que dizimara as tropas que Bonaparte mandara para acabarem com a Revolução Haitiana, não desistira de matar franceses e impediu-os de construírem o Canal do Panamá. Mesmo que já houvesse aparecido por plagas brasileiras desde muito antes, foi do Caribe que veio uma grande epidemia da febre amarela para a própria capital do país. Não por acaso, foi Adolfo Lutz o grande sanitarista brasileiro que descobriu todo o ciclo da doença e o mosquito seu vetor. Também os países mais aquinhoados sofreram com ela: na Guerra Hispano-Americana, mais da metade das 345 baixas dos Estados Unidos em Cuba se deveram à febre amarela, que deixou mais de dois mil doentes.

            Entre nós, o início da República Velha propiciou que os sanitaristas agissem de acordo com os interesses dos governantes, e grandes medidas higienistas foram tomadas nas principais cidades, especialmente no Rio de Janeiro. Um grande movimento popular, a Revolta da Vacina, foi uma consequência do pragmatismo de Rodrigues Alves e a convicção de Osvaldo Cruz, que já havia erradicado a febre amarela e agora terminava com a varíola. Com a extinção da peste bubônica em Santos, os portos brasileiros com um século de atraso, finalmente se abriam para as nações amigas. Aparentemente, a civilização andava de braços dados com a saúde!

            Viria, no entanto, da velha Europa um novo e poderoso fantasma a atormentar os pecadores. Foram necessários três dos Cavaleiros do Apocalipse – o da Guerra, com sua espada vermelha, o da Morte, com sua gadanha, e o da Fome, com sua balança vazia – para liquidarem 9 milhões de pessoas de 1914 a 1918; no entanto, com o nome de Gripe Espanhola, o Cavaleiro da Peste trucidou entre 20 e 40 milhões por todos recantos do mundo. Foi uma doença “democrática”, atingia sem distinções todas as camadas sociais, e a mutação viral que alcançara o até então pouco agressivo Influenza provocou traumas que são re-atualizados ainda hoje. No Brasil, foram 300 mil vítimas fatais; também “democraticamente”, entre elas o presidente Rodrigues Alves! 

            Isto foi um pouco de História, mas o que virá no futuro? Controlou-se a sífilis e outras doenças sexualmente transmissíveis, mas a Síndrome da Imunodeficiência Adquirida – que conhecemos pela sigla inglesa AIDS – ainda atinge 30 milhões de pessoas, sendo endêmica em algumas regiões africanas. O conhecimento crescente da patologia da doença e da eficiência dos tratamentos ainda esbarra em resistências a medidas preventivas dos governos de vários países, quase sempre pressionados por grupos religiosos conservadores que revivem os velhos castigos divinos. A culpa?  Dos outros, dos pecadores... Solução? Castidade, abstinência etc...

Mas de quem seria a culpa da Síndrome da Vaca Louca, da Gripe Suína, ou da Gripe Aviária? E que medidas a tomar num mundo globalizado onde os grandes capitais exigiram a saída progressiva da intervenção dos Estados na promoção do bem estar social? Epidemias que paralisem populações produtivas, mesmo que não apresentem altos graus de morbidade e mortalidade, poderiam trazer danos econômicos e sociais de dimensões inimagináveis! Apocalípticas, quem sabe...

Há um conto árabe!

Nos tempos do Califado, o príncipe Abd’ul Aziz saiu da Bagdá para passear a cavalo no deserto. Na volta, encontrou uma velhinha que andava muito vagarosamente em direção à cidade; condoendo-se dela, ofereceu a garupa do cavalo para ajuda-la a chegar mais rápida e comodamente. Quando ela apeou e agradeceu sua ajuda, o príncipe indagou seu nome, ao que ela respondeu: – Sou a Peste! Tomado de fúria, Abd’ul Aziz sacou a cimitarra para decapitá-la, mas a velha não demonstrou qualquer reação: – Sou imortal, disse, se me decapitares voltarei de novo, mas façamos um trato: se me deixares agir agora, prometo que matarei apenas a quinta parte da população, não metade como pretendia! O príncipe aceitou o acordo, e imediatamente tratou de informar seus vizires do que estava ocorrendo, para tomarem providências. Mas não houve caso, a Peste foi implacável! Ao cabo de um mês, mais de três quartas partes das pessoas haviam morrido. Um irreconhecível Abd’ul Aziz saia novamente para o deserto, quando deparou com a velha que também saia de Bagdá. Alcançou-a: – Desgraçada, vais morrer, não cumpriste com a promessa! Com toda a calma respondeu a Peste: – Cumpri rigorosamente com o trato, matei apenas a quinta parte do povo de Bagdá... Os demais morreram de medo!

Esta versão da Peste árabe não tem a virilidade do Cavaleiro do Evangelista, mas parece ter mais sagacidade. Afinal, joga com uma variável que ainda não pensamos. O Apocalipse será a Peste, ou bastará a ameaça da Peste?

Cesar Augusto Barcellos Guazzelli

É professor de história da UFRGS
 

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